quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Estava com medo e isso era bem claro. Conseguia mostrar no rosto aquilo que as palavras não coseguiriam dizer se saíssem da boca. A tensão pré-alguma-coisa sempre deixava as unhas roídas, os cabelos mais brancos, as rugas mais intensas e aquela cara sisuda durante todo o tempo. "Até dormindo tem a cara amarrada", dizia a mulher quando acordava de madrugada pra ir beber água e olhava pro marido deitado ao seu lado.

O que preocupava o senhor Félix era sempre a mesma coisa: todo mês havia um campeonato de buraco na vila e ele sempre ía pras finais com a sua dupla, o senhor Álvaro. O problema é que eles sempre eram derrotados na grande final e tinham que esperar por mais um mês até que chegassem novamente na final e tentassem ganhar algum título. Félix e Álvaro eram grandes amigos, desde a infância. O Seu Félix era um cara mais fechado, mais na dele e por isso as rugas já apareciam em seu rosto denunciando o comportamento "amarrado" de ser. Seu Álvaro era o oposto. Com tanta alegria de viver e tanta disposição, ostentava apenas uma calvice breve e os dentes amarelados por causa do cigarro que não saía da sua boca. Os dois chegaram pra morar na vila no mesmo ano, em 1952 quando os seus respectivos pais se aposetaram da Marinha e ganharam uma casinha na vila dos marinheiros para viver pelo resto da vida. Os dois cresceram juntos, compartilharam uma vida inteira e adolescência juntos. Seu Félix herdou do pai a casa e, desde que se casou a dona Madalena, mora por lá. Os dois não tiveram filhos. Seu Álvaro chegou a sair de casa quando grande mas voltou pra cuidar da mãe doente e depois da morte dela, continuou por lá.

Os dois tinham a mesma rotina de 'velhinos saúde' e caminhavam pela manhã todos os dias. Jogavam conversa fora no balanço do jardim e vez ou outra arrumavam a garagem, o jardim, pintavam um portão... Nas noites de terça era o clássico campeonato de buraco, organizado por tabelas de classificação e por níveis de dificuldade, os dois eram do tempo da fundação do campeonato. Seu Álvaro até já tinha sido presintende do clube do buraco, mas hoje era apenas um jogador e a dupla oficial de seu Félix. Pois bem, era final de campeonato e os dois estavam nas semi-finais do campeonato, se ganhassem hoje já garantiam vaga na final da semana que vem e eles ganharam. Durante uma semana seu Félix ficava de cara amarrada, mais calado do que nunca e mirabolando jogadas imaginadas e fantásticas para vencer a dupla adversária. Ele tinha até o truque pra conseguir pegar o morto antes do tempo fazendo apenas uma sequência real limpa. Tudo armado, tudo pronto em sua cabeça, mas jogo é jogo e a única regra que existe é a sorte.

Seu Félix estava com medo. Ele sempre ficava com medo antes das partidas porque levava aquilo muito a sério. E hoje como era de se esperar eles pederam outra vez, embora seu Álvaro tivesse chegado muito perto de bater por duas vezes. Seu Félix sempre levantava da cadeira com muita raiva e ía embora pra casa sem dar boa noite aos companheiros. Seu Álvaro sempre ficava pra discutir as jogadas com os vencedores e fumar mais um cigarro até ir pra casa.



[faz tanto tempo que eu fiz que perdi a vontade de terminar. fica aqui pro futuro, quem sabe]

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